terça-feira, 13 de setembro de 2011

Da janela dele.


Fim de tarde e fui resolver umas questões fora do escritório. Saí tranquila, feliz da vida e cruzei com uma turminha de crianças reunida perto do McDonald’s. Meninos da rua. Eram três. Os maiores aparentavam ter em torno de seus nove anos, o menor eu diria que não passava de sete. Não é raro que eles estejam por lá, pedindo umas moedas ou um pouco de atenção. As pessoas costumam dar. Moedas. Atenção não.

A meninada costuma se aproximar e fazer uma abordagem rápida, certos de que se não for assim as pessoas se desviam logo com passos ainda mais rápidos do que os deles. Passos rápidos, cabeças baixas. Eu não costumo andar assim e lá ia observando ao meu redor. Ao ensaiar uma aproximação, o menorzinho deles cruzou diretamente com meu olhar e pareceu se assustar. Eu sorri. Ele pareceu se assustar de novo. Mas também sorriu e se aproximou perguntando se eu não daria algo para ele comer.

Enquanto eu mexia na minha bolsa pensando se deveria dar dinheiro, comida ou nada, me assentei em uma das mesas dispostas ali na calçada, com ele na frente me olhando. O curioso é que havia uma centena de olhares sobre nós dois, vindos de dentro da lanchonete. E eles eram de preocupação, de medo, como se eu estivesse a um segundo de ser atacada por aquela criaturinha na minha frente. Me olhavam como se eu fosse a vítima, sem lembrar que a vítima era ele. Sim, vítima de um mundo que separa com um vidro duas realidades que existem ao mesmo tempo sem se misturar.

A verdade é que enquanto eu ouvia aquela criança inteligente e esperta me responder que não tem pai, que sua mãe trabalha de dia e de noite, que não ia comprar drogas porque só cheira (não sei exatamente o que) quando está com muita fome, que às vezes vai à escola de manhã, que quando crescer quer ter um computador e ser jogador de futebol e que ele é proibido de entrar no McDonald’s, eu só conseguia pensar que tem coisa muito errada e fora do lugar. Me deu uma espécie de tristeza cheia de raiva. Cheia de vontade de entrar naquela lanchonete, tirar todo mundo lá de dentro e colocar aquela criança assentada na mesa que quisesse com um “McLanche ‘muito’ Feliz” na frente.

Aquelas mesmas pessoas que andam de olhar abaixado fora da lanchonete, levantam seus olhares quando estão dentro. Aí vêm os governantes com uma dezenas de teorias à respeito de dar ou não comida ou dinheiro para estas crianças que moram ou vivem nas ruas. Mas quer saber? Para mim, são um bando de covardes e inertes. A turma dos olhares abaixados e os governantes. Eu segui meu coração. Quis dar alguma coisa para aquela criança. Nem que fosse um segundo da minha atenção e uns trocados. Não é tão diferente assim das bolsas-qualquer-coisa inventadas como paliativo de uma doença social crônica.

Poxa, aquele menininho assentado na minha frente com os braços escondidos de frio dentro da camiseta relaxada não é capaz de fazer a ninguém um terço do mal que é feito diariamente a ele. Ele é colocado à margem de uma sociedade inteira, que não o encara nos olhos, para fugir daquilo que ele representa. E quando eu falei de covardes e inertes nem eu mesma sei exatamente a que estaria me referido. Talvez da falta de vontade das pessoas de mudar o mundo, fazer trabalho voluntário, revoluções, rebeliões, fazer ao menos nossa parte. Talvez da volta para casa, da virada de costas, do abaixar de olhar como se isso tudo não fosse um problema nosso. Porque é isso que todo mundo faz todo dia, é isso que aquele bando de gente tomando Coca-Cola estava fazendo ali.

Por um segundo eu olhei para o mundo com os olhos daquele pequeno garoto que teve que aprender a se virar sozinho e é só uma estatística para a maioria das pessoas. Por um segundo eu olhei pela janela dele. E quer saber? O que eu vi não foi bom. E pior foi imaginar que é a única paisagem que ele tem para olhar todos os dias. A janela dele não mostra outra coisa, nunca. Eu só acho que estas crianças tinham que estar brincando. Que Luiz Otávio (ou Pedro ou João) tinha que estar em uma roupa quentinha e não com seus bracinhos escondidos de frio na camiseta velha. Tinha que ter uma cama, um chuveiro. Um livro. Um carrinho. Uma bola. Tinha que ter um pouquinho de amor e algum lugar para onde correr quando as coisas não estiverem boas. E na maior parte do tempo não estão.

Ainda na dúvida entre comida e dinheiro, entendi que queria mesmo era dar um abraço naquele humaninho pequeno com olhinhos de jabuticaba. Mas não dei. Coloquei cinco reais na mão dele e assisti ele correr até a farmácia ali na frente, comprar um pacote de biscoitos, depois voltar correndo para me devolver o troco, que eu seguramente não aceitei. Passei a mão na sua cabecinha e fui embora depois que ele sorriu para mim e voltou gritando e correndo para o encontro dos seus companheiros de difícil estrada.

E sei que ele soube que eu não estava com medo dele como a maioria das pessoas. E que tenho um medo enorme do que ele representa na sociedade em que vivo. E também soube que a vida dele e a minha seguiriam iguais quando eu virasse as costas, mas de alguma forma ele se sentiu bem ao meu lado e eu também me senti assim. Por um segundo eu fiz parte do mundo dele, ou ele parte do meu, não sei ao certo. Sei só que as crianças não deveriam estar nas ruas. Nunca.

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